Em 1878 comecei propriamente a minha carreira de engenheiro, como membro da “comissão Hydraulica” que o governo do conselheiro Sinumbú para o estudo dos portos e navegação interior, sob a direção de ilustre engenheiro americano, Mr. Milnor Roberts, para este fim contratado. A comissão era numerosa, composta por gente escolhida e destinada a dirigir trabalhos futuros deste gênero no país. Convidado a fazer parte dela pelo senador Viriato Medeiros, aceitei o convite. Eu não havia, absolutamente, solicitado o emprego. O convite fora de todo espontâneo, o que, de algum modo, me desvanecera. Toco aqui num incidente então ocorrido, porque ele serve para explicar um dos poucos casos de preconceito social, hoje bem raros no país. A comissão, em certo dia, apresentou-se ao Ministro que então lhe dirigiu a palavra e explicou o ponto de vista do governo para promover a sua criação. Estive presente ao ato assim como todos os meus colegas, e, no dia seguinte, publicava o Diário Oficial a relação dos engenheiros para ela nomeados. O meu nome, porém, por motivo que então ignorei, não apareceu na relação. Estava, pois, excluído da comissão para qual, aliás, tinha eu recebido o convite. É que eu era o único homem de cor na luzida comitiva, e ao espírito do Oficial de Gabinete do Ministro o fato parecera-lhe muito chocante, tanto mais quanto se tratava de pessoal a servir com técnicos americanos, os quais, ao que se dizia, não apreciavam a companhia dos homens de cor. Fui assim eliminado e experimentei então o primeiro espinho do preconceito entre nós. Mas ao Senador Viriato de Medeiros, a quem procurei à noite para agradecer-lhe o seu gesto espontâneo ao convidar-me, não lhe pareceu curial a minha eliminação, e providenciou de pronto para que, no dia seguinte, tudo voltasse aos devidos termos. Devo a fina delicadeza do ilustre senador o ocultar-me as causas do incidente, as quais só muito mais tarde vim a conhecer por intermédio de um amigo comum.

Curiosamente, como já dito, um dos engenheiros da expedição era o seu amigo americano – e branco – Orville Derby, e mesmo o diretor Milnor Roberts, como nos conta o jornalista e poeta Júlio Romão da Silva, em perfil biográfico publicado em Theodoro Sampaio – o sábio negro entre os brancos, lhe considerava sobremaneira: “Tendo-o na conta de um dos melhores elementos de sua turma, não hesitava Roberts em confiar-lhe tarefas as mais difíceis”. É nessa expedição que florescem em Sampaio os dotes de geógrafo. Dos registros da expedição saiu o importante livro de Sampaio O Rio São Francisco e a Chapada Diamantina, considerado não só um trabalho de geografia, mas uma obra literária, tamanha a elegância de sua escrita.

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Em 1881, após retornar da expedição, trabalha como engenheiro ferroviário nas obras de prolongamento da estrada de ferro da Bahia ao São Francisco. Lá trabalha, dentre outras coisas, fazendo cálculo de pontes metálicas da ferrovia. Permanece nessa empreitada por dois anos e, após deixar a atividade na estrada de ferro, exerce atividade em outras obras ligadas ao São Francisco quando, em 1886, Orville Derby lhe convida para fazer parte da Comissão Geográfica e Geológica formada por João Alfredo Correia de Oliveira, presidente de São Paulo, para o levantamento da carta geológica da província e trabalhar no melhoramento do sistema fluvial. Vive em São Paulo por 18 anos e produz vários estudos da província e ocupa o cargo de diretor do Departamento de Saneamento; funda, com Eduardo Prado, o Instituto Histórico e Geográfico de SP, desenvolve e registra seus estudos linguísticos sobre a língua tupi em sua obra mais conhecida, O tupi na geografia nacional, bem como os importantes ensaios São Paulo nos tempos de Anchieta – que causou enorme espanto em Eduardo Prado, pela excelência literária – e São Paulo no século 19. Em 1893 formou uma comissão, com o engenheiro Francisco Sales de Oliveira, para a aprovação e criação da Escola Politécnica de SP – incorporada à USP em 1934 –, mediante projeto de Antônio Francisco de Paula Souza, deputado estadual à época.

Os relatórios produzidos em São Paulo geraram um incidente curioso em relação ao imperador dom Pedro II. Em visita à província, o imperador pede para ver os documentos produzidos por Sampaio. Ele registra em sua nota autobiográfica:

Toda manhã em Ipanema foi para D. Pedro II examinar plantas, croquis, processos de medição, notas, cálculos, desenhos da exploração do rio, indagando quanto aos resultados práticos do trabalho, inquirindo, objetando sobre assuntos técnicos como se fora ele mesmo um profissional nesse ramo de serviço. Ao almoço, convidou-nos a todos para sua mesa, e me fez a mim a honra de ocupar a cadeira à sua direita, pois durante o serviço não se conversou sobre outra coisa que não dos estudos de exploração, dos acidentes de viagem, dos índios, os seus costumes e a sua língua. Desço a essas minúcias todas para que se veja o quanto era o interesse do monarca pelos estudos científicos, o seu amor à ciência, a sua vasta erudição, a sua ambição de saber, o seu desejo manifesto de distinguir, e de fazer a justiça, sem preconceito de classe, sem preconceito de cor, pois D. Pedro II foi o brasileiro mais isento de preconceitos que se conheceu no seu tempo.

Apesar de ter discursado pouquíssimas vezes, Sampaio era tratado como um sábio, um ídolo pelos colegas de parlamento

Em 1904, já mestre de grande notoriedade, retornou à Bahia para trabalhar na restauração do sistema de água e esgotos. Terminado o trabalho, torna-se membro do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia, a a ser o principal orador e assume a presidência em 1923, permanecendo por 14 anos na função. Promoveu eventos de grande repercussão e colaborou intensamente com a revista do instituto. Sua aversão à política institucional é colocada à prova em 1926, quando assumiu a cadeira de deputado federal pela província por dois anos, não eleito, mas indicado por Antônio Mangabeira, que havia assumido o cargo no Ministério do Exterior. Apesar de ter discursado pouquíssimas vezes, era tratado como um sábio, um ídolo pelos colegas de parlamento. Jorge Wanderley de Araújo Pinho afirmou: “E tudo nele era equilíbrio e elegância”. Ao fim e aos cabo, mais do que o nome de uma famosa rua em São Paulo ou de uma dupla sertaneja, Theodoro Sampaio foi um dos mais nobres seres humanos que aram por essa terra.

Sampaio ainda foi mestre de Euclides da Cunha, fornecendo informações geográficas valiosas ao escritor de Os Sertões. Como registra Gilberto Freyre, em perfil biográfico de Cunha: “o autor de Os Sertões teve em Teodoro Sampaio não só um colaborador, mas um orientador no estudo de campo de geografia e de história geográfica e colonial do Nordeste; e talvez – me aventuro a acrescentar – um tradutor de trechos mais difíceis da língua inglesa, em cujo conhecimento parece que Euclides da Cunha era patrioticamente fraco”.

Sobre a causa abolicionista, Theodoro Sampaio manteve uma atitude aparentemente tácita; era um espírito tão ou mais introspectivo e moderado quanto André Rebouças ou Machado de Assis, e evitava o assunto quase completamente. Em seus escritos, quase nunca fala no assunto, e mesmo quando trata, por exemplo, do desenvolvimento do Brasil no pós-abolição, fala com iração da grande quantidade de imigrantes europeus que chegaram ao Brasil a fim de ajudar a desenvolvê-lo, mas nem sequer menciona que os ex-escravos foram totalmente abandonados à própria sorte e à margem da sociedade. No entanto, isso não quer dizer que não ligava para o assunto. Além de ter libertado do cativeiro seus irmãos – e, possivelmente, a própria mãe – logo após ter se formado na Politécnica, mantinha, em particular, não só uma atitude crítica em relação ao cativeiro, como também agia – de modo parecido com o americano Booker T. Washington. Diz Romão da Silva, em Theodoro Sampaio – o sábio negro entre os brancos: “É certo, todavia, que Theodoro nunca foi um abolicionista de rua e de tribuna. Nem por isso, entretanto, deixou de o ser do modo mais conveniente e positivo”. O escritor e político Humberto de Campos, seu amigo, escreve: “O seu nome não anda trombeteado de mistura com os demagogos da emancipação. Mas Theodoro Sampaio, homem de cor, conhecia de perto os problemas de sua raça. Certa vez, na Câmara, comentando um artigo meu sobre o caráter antissocial e antieconômico da Lei João Alfredo, contou-me a ação silenciosa que vinham desenvolvendo, em São Paulo, Antonio Prado, Orville Derby e ele, no sentido de acautelar o destino do escravo uma vez cessado o cativeiro. Os acontecimentos políticos no Rio, entretanto, anularam o plano prudente que se vinha elaborando na Chácara do Carvalho, e que teria modificado, talvez, desde logo, a fisionomia social do Brasil”. Portanto, é bom ponderar e saber que cada qual, dentro de suas possibilidades, fez o que pôde. Num discurso posterior, a respeito do 13 de Maio, o próprio Sampaio iria afirmar, em tom desiludido: “Deixar os direitos do homem, a própria dignidade humana, à mercê de um preconceito de raça ou de cor, é negar séculos e séculos de lutas as mais gloriosas na história da humanidade, é preceito que só a estupidez explica, sem jamais escusar”.

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Theodoro Sampaio, que só tinha uma irmã por parte de pai e mãe, casou-se com Capitulina Moreira Maia (depois Capitulina Maria Sampaio) em 1882. Teve oito filhos. Dos 38 anos de casamento, durante 29 Capitulina sofreu com problemas mentais. Tais problemas levaram Theodoro Sampaio a viver maritalmente com Glória Maria Pinheiro da Fonseca por 27 anos; com ela teve três filhos. Em 1920, após a morte de Capitulina, Sampaio casou-se com Amália Barreto Sampaio, com quem permaneceu até a morte, em 15 de outubro de 1937. Temos poucas referências de seus filhos. Em dissertação de mestrado publicada em 1981, Arnaldo do Rosário Lima escreveu que, dos filhos de Capitulina, “Carlos, Teodoro, Eduardo, José, Otávio, Amália, Corina e Frutuoso. Carlos formou-se em Medicina no Rio de Janeiro, Teodoro e Eduardo faleceram ainda jovens; sobre José e Otávio, não temos nenhuma referência, Amália e Corina permaneceram solteiras, e ambas, em idade avançada, foram morar num convento onde faleceram, e Frutuoso nasceu no Saboeiro, nos arredores de Salvador a 12 de novembro de 1883. Estudou na Bahia e em São Paulo, onde fez os seus estudos preparatórios. Cursou Engenharia e Arquitetura na Escola Politécnica de São Paulo, onde se formou em 1908. Em 1909 transferiu-se para a Bahia, a fim de auxiliar seu pai nos trabalhos técnicos do saneamento da cidade, tarefa de que foi incumbido em função de seu contrato com a municipalidade. Dedicou-se aos trabalhos arquitetônicos, construiu vários prédios nesta cidade, dentre os quais os da Santa Casa da Misericórdia, na cidade baixa, e o Instituto Vacinológico. Ao falecer, era fiscal da Escola Politécnica da Bahia, cargo que desempenhou com esmero”. Da união com Glória Maria nasceram “Maria da Glória Sampaio, Cordelia Sampaio e Teodoro Sampaio Filho. A primeira casou-se com Luís Antônio de Lacerda, filho do engenheiro Antônio Lacerda, construtor do elevador que tomou o seu nome. Tiveram cinco filhos. Luiz Teodoro Sampaio de Lacerda, Fernando Augusto Sampaio de Lacerda, Maria Luiza Sampaio de Lacerda Señra, Leila Maria da Conceição Sampaio Lacerda e Maria Lucia Sampaio de Lacerda e Silva. Esta última é casada com o conceituado professor de Educação Física Valter Figueiredo da Silva. A segunda casou-se com Donato Benini, imigrante italiano. O terceiro, Teodoro Sampaio Filho, formou-se em Direito e conservou-se solteiro”.

Família grande e de nobre linhagem, que hoje, apesar de não mais carregar o prestígio do grande luminar de nossa história, deve ser lembrada sempre, para que nutramos o nosso imaginário – sobretudo o imaginário da juventude negra do nosso país – de boas referências, a fim de superarmos o espírito de ressentimento e vitimização que ideólogos inescrupulosos tentam, a todo custo, lhes infundir; e que saibam, ou melhor, saibamos todos, que nossas possibilidades são do tamanho de nossos sonhos. Viva Theodoro Sampaio!

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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