[...] a realidade além de todos os atributos, o abismo que era antes do Próprio Criador. Ele é a Natureza, é a Via, o Caminho. É a Via pela qual o universo prossegue, a Via da qual tudo eternamente emerge, imóvel e tranquilamente, para o espaço e o tempo. É também a Via que todos os homens deveriam trilhar, imitando essa progressão cósmica e supracósmica, amoldando todas as atividades a esse grande modelo. […] É a doutrina do valor objetivo, a convicção de que certas posturas são realmente verdadeiras, e outras realmente falsas a respeito do que é o universo e do que somos nós.
São os valores ados a nós por séculos e séculos de experiência, que criaram uma tradição cujos sucessos nos permitem seguir adiante – imitando os padrões estabelecidos –; e em que os fracassos nos ajudam a corrigir as rotas de nossa caminhada. Parafraseando uma expressão do filósofo neoplatônico Bernardo de Chartes, muito utilizada por Kirk: se hoje vemos mais longe, é porque estamos sobre os ombros de gigantes. A tradição, de acordo com G. K. Chesterton em Ortodoxia (Mundo Cristão), “pode ser definida como uma extensão dos direitos civis. Tradição significa dar votos à mais obscura de todas as classes, os nossos anteados. É a democracia dos mortos. A tradição se recusa a submeter-se à pequena e arrogante oligarquia dos que simplesmente por acaso estão andando por aí”. Porém, nossa era é pródiga em negar aquela virtude louvada por Aristóteles, a temperança (ou moderação); e, por outro lado, há uma ausência quase total de normas. Nas palavras de Kirk, de novo em Enemies of the Permanent Things: “uma norma significa um padrão duradouro. É uma lei da natureza que ignoramos por nossa conta e risco. É uma regra de conduta humana e uma medida da virtude pública. A norma não significa a média, a mediana ou o medíocre. A norma não é a conduta do homem médio sensitivo. A norma não é simplesmente uma medida do desempenho médio de um grupo. [...] Existe uma norma: embora os homens possam ignorá-la ou esquecê-la, a norma não deixa de existir, nem deixará de influenciá-los”.
Para Kirk, restabelecer as normas demandaria um longo processo de renovação das “coisas permanentes” das quais falava T.S. Eliot, sobretudo através da literatura, das artes e dos valores fundamentais da sociedade, desagregados pelas ideologias. As normas não são apenas convenções, são padrões duradouros de comportamento e ordem da sociedade, que são rejeitados não sem um grande prejuízo. Diz Kirk: “Se os homens assumem que as normas não são nada mais que fabricações pomposas de seus anteados, criadas para servir aos interesses de um grupo específico ou uma era, então cada nova geração desafiará os princípios de ordem pessoal e social, e seremos obrigados a aprender a sabedoria através do sofrimento”.
A literatura é uma arma poderosa na formação do imaginário de um povo
Uma característica marcante dos movimentos ideológicos – marxismo, nazismo, fascismo etc. – é a insurreição revolucionária contra a ordem estabelecida, uma rejeição sistemática à voz dos anteados, na crença de que a sociedade pode ser transformada e aperfeiçoada através de experiências inovadoras, radicais, pretensamente científicas, que supostamente levam ao progresso e ao “mundo melhor”. Porém, o ideólogo revolucionário, em seu fanatismo por novidade (como diz Andrei Pleșu), está em rebelião contra Deus e contra os homens. Esquecendo-se daquele “sentimento de criatura” do qual falava Rudolf Otto em O Sagrado, assume um positivismo inconsequente, destruindo, com isso, nos termos empregados por Eric Voegelin, a tensão do homem em direção ao seu fundamento divino. Tudo isso pode soar meio religioso, caríssimo leitor – e é, pois não podemos prescindir, como não fez a grande tradição filosófica até o início da modernidade, da perspectiva de um fundamento divino de nossa existência, que é a fonte de toda ordem moral; já abordei esse tema em outro artigo, aqui, nesta Gazeta do Povo. Nas palavras de Kirk, o ideólogo “imanentiza os símbolos religiosos”, cujas origens são para ele um “incômodo e uma maldição”.
Mas é exatamente na total dissolução da imaginação moral que Russell Kirk se concentra. Ele, que foi chamado por Gerhart Niemeyer de “O Cavaleiro da Verdade”, compreende a imaginação moral como a virtude que nos informa sobre a dignidade da natureza humana, nos diferenciando, fundamentalmente, de meros primatas; e diz que a grande responsável pela formação do imaginário é a literatura: “até anos bem recentes, os homens tinham como certo que a literatura existe para formar a consciência normativa, para ensinar os seres humanos a sua verdadeira natureza, a sua dignidade, e seu lugar no esquema das coisas. Tal foi o esforço de Sófocles e Aristófanes, de Tucídides e Tácito, de Platão e Cícero, de Hesíodo e Virgílio, Dante e Shakespeare, de Dryden e Pope”. A literatura é uma arma poderosa na formação do imaginário de um povo; quando é alimentada pelos grandes luminares do pensamento, aqueles cujo tempo imprimiu sua marca de prestígio e cuja capacidade de evocar experiências e ditar paradigmas é superior a qualquer outro estímulo – os chamados clássicos –, os indivíduos (e, consequentemente, a sociedade) amadurecem moralmente vigorosos e sadios; parafraseando C.S. Lewis, quanto mais imaginação um leitor ainda inexperiente tiver, mais capaz será de fazer associações por si próprio, e aquela grande literatura certamente o influenciará. Kirk, como diz de si próprio em Sword of imagination (reproduzido por Catharino), “desembainhara a espada literária e tocara a trombeta das letras”, e “o que pôde fazer para despertar a imaginação e a coragem do próximo, ele o fizera, com o melhor de seus talentos limitados. Com isso, “manteve afiada a espada da imaginação para a década seguinte ou, possivelmente, por mais tempo”.
Essa foi a tarefa de vida de Russell Kirk, um intelectual totalmente devotado à recuperação dos valores fundacionais de nossa civilização, que, após alcançar o ápice na filosofia, na arte e na ordem moral por séculos de tradição e aprendizados – uns prazeirosos, outros (muito) dolorosos –, atualmente a por um de seus maiores desafios: vencer a sanha incansável de ideólogos culturais, sedentos por destruir os valores que nos trouxeram até aqui, a fim de implantar uma utopia igualitária que, conforme a experiência vem nos mostrando, gera caos e morte. É dever de todo aquele que ama o seu país lutar com as armas da imaginação moral contra a degradação normativa, a fim de impedir que sucumbamos, como os Homens Ocos de T. S. Eliot – grande amigo de Kirk:
Entre o desejo
E o espasmo
Entre a potência
E a existência
Entre a essência
E a descendência
Tomba a Sombra
Porque
Teu é o Reino
Porque Teu é
A vida é
Porque Teu é o
Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Não com uma explosão, mas com um suspiro.