– seu livro dedicado à ópera Tristão e Isolda –, compreende isso perfeitamente, e diz:
Seu objetivo não era identificar pessoas e acontecimentos históricos exemplares, mas familiarizar-se com uma cultura em que o real tinha sido vastamente penetrado pelo ideal: uma cultura em que as pessoas não apenas faziam coisas, mas viviam em nome de coisas. Assim ele descobriu o mito – não como uma reunião de fábulas e crenças, nem como religião primitiva, mas como categoria distinta do pensamento humano, tão aberta para nós, Wagner pensava, nesse mundo de ceticismo científico, quanto para os habitantes da Grécia ou da Islândia antigas. O mito surgiu para Wagner como uma forma de esperança social […] Para Wagner, o mito não é uma fábula, nem uma doutrina religiosa, mas um veículo do conhecimento humano. O mito nos faz conhecer a nós mesmos e nossa condição, usando símbolos e personagens que dão forma objetiva a nossas compulsões interiores […] Os mitos não falam daquilo que foi, as daquilo que é eternamente.
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Por isso a importância das lendas escandinavas para Wagner, porque ele via nelas os modelos exemplares (para usar um termo de Mircea Eliade) para a regeneração cultural de seu povo, para a reforma da imaginação moral da sociedade. Se para as classes abastadas europeias a ópera era apenas um meio de divertimento – e também um local para fazer negócios –, para Wagner era um dos principais, senão o principal, veículo de educação e cultura. Por isso o seu envolvimento com todos os aspectos da ópera, desde a música e os libretos, até os cenários, figurinos e a construção de um teatro especialmente para a montagem de suas óperas, o Bayreuth Festpielhaus. Na obra de arte total wagneriana, cada aspecto é importante para garantir o efeito catártico semelhante ao produzido pela tragédia grega, cuja função era, como diz Aristóteles, de “purificação das paixões”.
Desse modo é que Wagner se aproxima das religiões – sobretudo do cristianismo e do budismo. Não como um crente – ele nunca viria, apesar de ter sido criado num lar protestante, a confessar a fé em nenhuma religião –, mas, como diz Scruton, por acreditar que “um mito não era um conto de fadas decorativo, mas a elaboração de um segredo, um modo de, simultaneamente, revelar e ocultar o que só pode ser compreendido em termos religiosos, pelas ideias de santidade, de sacralidade e de redenção”; e que “todos nós precisamos dessas ideias e que, ainda que as pessoas comuns através do véu da doutrina religiosa, elas adquirem vida nos grandes exemplos de amor e de renúncia, encontrando na arte uma forma articulada”. Suas óperas, sobretudo as finais, como a Tetralogia do Anel e Parsifal, exaltam o valor do heroísmo humanista, do amor e da renúncia redentores. “O ciclo do Anel”, diz Scruton, “nos mostra pessoas que vivem num mundo encantado – um mundo pelo qual os deuses vagueiam, cheios de interesse pela humanidade, em que as forças que nos prejudicam ou que nos assistem são personalizadas e recebem preces. Mas esse encantamento, que coloca os deuses no Valhalla e as leis no mundo humano, também é uma usurpação. Os deuses nascem de nossas necessidades e esforços inconscientes – eles são lançados por aquela explosão de energia moral por meio da qual a comunidade humana emerge da ordem natural e se idealiza”.
Wagner pretendia resgatar a sua querida Alemanha dos descaminhos modernos – através de um método que considero absolutamente apropriado: a reformação da imaginação moral pela arte. No entanto, incorreu, influenciado pelas ideias controversas de filósofos como Ludwig Feuerbach e Arthur Schopenhauer, bem como pelos ideais revolucionários de Bakunin e Proudhon (Marx nunca foi citado por Wagner), em erros grosseiros de interpretação da própria realidade, e caiu em delírio ideológico. Mas é importante frisar que a confusão que maculou a sua mente não comprometeu, de modo algum, a sua obra absolutamente genial. Por sua postura anticlerical e antiestado, também é possível intuir que ele jamais concordaria com a submissão da arte aos interesses de Estado; para Wagner, a cultura pertence ao Völk – ao povo. E nunca saberemos se o uso que, posteriormente, Hitler fez dos ideais nacionalistas e antissemitas wagnerianos – um combustível para a ideologia nazista e seus massacres genocidas – seria compactuado pelo compositor. Resta-me, como um grande irador da obra de Richard Wagner, crer que não.