Logo, ao ser perguntado por um daqueles amigos sobre qual seria a minha hipótese para explicar o dilema com o qual abri este artigo, respondi não ter uma plenamente elaborada, limitando-me a constatar a existência objetiva dos fatos aparentemente paradoxais. Uma explicação possível, todavia, é a de que, contrariando o axioma materialista, os grandes empresários capitalistas, detentores do poder econômico, já não tenham uma mentalidade burguesa-capitalista, mas, ao contrário, aristocrática e dinástica, desejando proteger-se das flutuações do mercado por meio da associação com o poder político-militar. Nesse sentido, conquanto tenham enriquecido na economia de mercado, já não a considerariam propícia aos seus interesses, vendo na ordem capitalista antes um perigo que uma oportunidade. Cansado de aventuras e riscos, o antigo empreendedor torna-se, então, um novo aristocrata.

Essa hipótese é reforçada, por exemplo, pela confissão do próprio George Soros, que, em artigo significativamente intitulado “A Ameaça Capitalista”, publicado na The Atlantic em fevereiro de 1997, escreve com todas as letras, e sem um pingo de vergonha: “Embora eu tenha feito fortuna no mercado financeiro, hoje temo que o fortalecimento ir do capitalismo laissez-faire e a difusão dos valores do mercado para todas as esferas da vida estejam ameaçando a nossa sociedade aberta e democrática. O principal inimigo da sociedade aberta, creio, já não é a ameaça comunista, mas a capitalista”.

A ideia de que ricos de esquerda são uma impossibilidade é um vício de raciocínio contaminado com elementos de marxismo, a começar pela teoria da determinação material da consciência

A hipótese acima resumida não é minha, mas do filósofo Olavo de Carvalho. Há quase duas décadas, Olavo já refletia sobre o tema, que até hoje soa inverossímil para a nossa provinciana classe falante. Para qualificar tipos como Soros, Rockefeller, Ford – e, numa escala menor, talvez até o nosso Lemann –, o filósofo cunhou o termo metacapitalistas. No artigo “História de quinze séculos”, publicado no Jornal da Tarde em 2004, os metacapitalistas são definidos como “a classe que transcendeu o capitalismo e o transformou no único socialismo que algum dia existiu ou existirá: o socialismo dos grãos-senhores e dos engenheiros sociais a seu serviço”. Segundo Olavo, ao contrário do burguês capitalista clássico, que tinha na fortuna acumulada a base exclusiva de seu poder, os metacapitalistas fundamentam o seu poder também no controle do aparato político, burocrático e militar, assemelhando-se, nesse sentido, às velhas aristocracias europeias, apenas que, ao contrário delas – cujo poder era socialmente legitimado pelo prestígio conquistado graças aos triunfos militares contra os invasores bárbaros, ao tempo do colapso do Império Romano –, a nova aristocracia metacapitalista detém um poder tão substancial quanto ilegítimo, baseado unicamente no autointeresse e na formação de oligopólios financeiros e políticos.

Em comparação com a longa duração das ordens medieval e absolutista – que, juntas, somam quase 15 séculos –, a ordem liberal-burguesa propriamente dita, fundada no livre mercado, teria sido um episódio efêmero na história humana. Parecendo descrever precisamente o cenário atual do ano 2021, em que os donos das maiores fortunas ocidentais investem pesado no fomento ao radicalismo de esquerda e no cortejo à ditadura comunista chinesa, Olavo explica: “Um século de liberdade econômica e política é suficiente para tornar alguns capitalistas tão formidavelmente ricos que eles já não querem submeter-se às veleidades do mercado que os enriqueceu. Querem controlá-lo, e os instrumentos para isso são três: o domínio do Estado, para a implantação das políticas estatistas necessárias à eternização do oligopólio; o estímulo aos movimentos socialistas e comunistas que invariavelmente favorecem o crescimento do poder estatal; e a arregimentação de um exército de intelectuais que preparem a opinião pública para dizer adeus às liberdades burguesas e entrar alegremente num mundo de repressão onipresente e obsediante (estendendo-se até aos últimos detalhes da vida privada e da linguagem cotidiana), apresentado como um paraíso adornado ao mesmo tempo com a abundância do capitalismo e a ‘justiça social’ do comunismo. Nesse novo mundo, a liberdade econômica indispensável ao funcionamento do sistema é preservada na estrita medida necessária para que possa subsidiar a extinção da liberdade nos domínios político, social, moral, educacional, cultural e religioso. Com isso, os megacapitalistas mudam a base mesma do seu poder. Já não se apoiam na riqueza enquanto tal, mas no controle do processo político-social. Controle que, libertando-os da exposição aventurosa às flutuações do mercado, faz deles um poder dinástico durável, uma neoaristocracia capaz de atravessar incólume as variações da fortuna e a sucessão das gerações, abrigada no castelo-forte do Estado e dos organismos internacionais... Essa nova aristocracia não nasce, como a anterior, do heroísmo militar premiado pelo povo e abençoado pela Igreja. Nasce da premeditação maquiavélica fundada no interesse próprio e, através de um clero postiço de intelectuais subsidiados, se abençoa a si mesma”.

Também em 2004, em palestra proferida na OAB de São Paulo, Olavo explica o problema de maneira ainda mais clara, esclarecendo o porquê de o establishment financeiro mundial (Wall Street, Davos, Fundação Rockefeller, Fundação Ford, Fundação Open Society etc.) apoiar invariavelmente movimentos e organizações de viés estatizante e socialista. “Para entender isso” – diz Olavo – “é preciso investigar um mecanismo que é gerado pelo próprio capitalismo, e que funciona assim: o sujeito, dentro da economia de mercado, prospera e enriquece de tal maneira que, quando chega num ponto, percebe não ter mais motivos para continuar submetido às oscilações do mercado. O mercado que o produziu, daí por diante, se torna uma ameaça. Então é preciso cair fora das leis de mercado para garantir a permanência da grande fortuna pelas gerações seguintes. O indivíduo, então, entra com um tipo de consideração que já não é capitalista, mas que é de ordem dinástica... A partir desse momento, a abordagem que essas pessoas fazem da sociedade já não corresponde a uma perspectiva capitalista, mas a uma perspectiva de tipo aristocrática... Quando essas grandes fortunas começam a raciocinar em termos dinásticos, elas têm de vencer o próprio mecanismo da economia de mercado que as constituiu, e só tem um jeito de fazer isso: você tem de dominar o Estado. Isso quer dizer que o poder dessas grandes organizações é econômico até certo ponto, mas depois se converte num poder político-militar que independe do curso dos assuntos econômicos porque detém os meios de dirigir, dominar e estrangular o mecanismo do mercado. A essas pessoas [donas das grandes fortunas] eu chamo de metacapitalistas. Metacapitalistas são aqueles que começaram como capitalistas, mas já transcenderam essa condição e se tornaram uma espécie de nova casta aristocrática”.

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Ora, se o objetivo já não é apenas o de enriquecer, mas o de dominar o Estado, e, mais amplamente, as consciências, qual modelo de regime político levou esse domínio às raias da perfeição, desenvolvendo uma tecnologia de controle da sociedade e do indivíduo jamais vista em outros contextos históricos? O modelo socialista, por óbvio. E é também óbvio que os metacapitalistas só apoiam medidas socializantes por saberem que, em termos estritamente econômicos, um regime socialista pleno é uma impossibilidade lógica e prática. Sabem disso, aliás, como a Nomenklatura bolchevique sempre soube, ao menos desde que Lenin lançou a Nova Política Econômica. A estatização completa da economia é inviável, e, para se manter de pé, todo governo de tipo socialista precisa tolerar algum grau de economia de mercado, ainda que de maneira clandestina (ver, sobre isso, USSR: The Corrupt Society – The Secret World of Soviet Capitalism, de Konstantin Simis).

É precisamente esse misto de economia capitalista e governo socialista que tem fundamentado a nova ordem mundial surgida com o fim da Guerra Fria. Numa espécie de acordo tácito com os comunistas, os metacapitalistas do Ocidente chegaram à conclusão de que seria preciso criar alguma forma de síntese entre o dinamismo econômico do capitalismo liberal e a eficiente tecnologia de controle social e imposição de consenso manejada pelos regimes socialistas. Não é à toa que, como protótipo dessa síntese, a China esteja se alçando à posição de potência hegemônica na ordem mundial contemporânea. Com a tolerância, quando não mesmo o endosso, dos metacapitalistas. Como sugeriu o intelectual chinês Di Dongsheng, que mencionei em artigo anterior, Pequim sempre exerceu forte influência sobre Wall Street, e voltará a exercer a partir da posse de Joe Biden. E, muito embora tudo isso ainda soe inconcebível para a maioria das pessoas (a exemplo dos meus amigos liberais), a verdade é aquela que, há 100 anos, escreveu o grande romancista britânico H. G. Wells (um notório socialdemocrata): “O grande negócio não é, de forma alguma, antipático ao comunismo. Quanto mais cresce, mais se aproxima do coletivismo”. Bingo!

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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