Podemos ler isto como uma demanda muito razoável por soberania que, nos termos de 48, é o “direito à autodeterminação dos povos”. Em 48, Fukuyama e seu Fim da História ainda não estavam no horizonte, e ninguém achava (exceto, talvez, HG Wells e cia) que o mundo inteiro teria de ter regimes idênticos com instituições idênticas, supervisionado por um órgão supraestatal. Por mim, que os salvadorenhos fiquem com Bukele se assim lhes aprouver. É complicado afirmar que as instituições por ele violadas, que não eram capazes de salvaguardar a vida dos salvadorenhos, tivessem tanto valor assim. A primeira função de um Estado é garantir o direito à vida; se a remoção das instituições resulta em vidas salvas, então essas instituições eram um obstáculo ao Estado.

Sob a hegemonia solitária dos EUA, algo aconteceu no mundo a partir dos anos 90 (o “Fim da História”) que fez com que os direitos humanos se transformassem em direitos individualistas para praticar atos antissociais contando com a leniência da sociedade – os famigerados direitos dos manos. Por isso, quando o pequenino El Salvador se insurge, todos os países ocidentais começam a pensar em imitá-lo. Sobretudo porque El Salvador era o país mais violento das Américas e, num curto período, tornou-se o mais seguro pelo menos da América Latina.

Uma coisa engraçada nessa história é que a direita praticamente inventou uma biografia para Bukele. Ele seria um outsider que apareceu do nada e resolveu o problema da segurança dando uma atropelada nos direitos dos manos. Seria um grande desburocratizador, e, por causa disso, ele transformou o Bitcoin em moeda nacional, junto com o dólar (que já era). Assim, ele seria um perfeito direitista a ser apoiado com o mesmo entusiasmo que Milei.

Acontece que essa história é falsa. A direita viaja na maionese com uma facilidade impressionante; até jornalistas experientes vão na onda. Bukele não é um outsider; ele já tinha sido prefeito do pequeno município de Nuevo Cuscatlán e, em seguida, da capital San Salvador, pela FMLN – o partido de esquerda. Rojas e Shullenberger, da Compact Magazine, fizeram um artigo (intitulado "Behind Bukele's Revolution") bastante esclarecedor sobre a trajetória de Bukele dentro do cenário nacional salvadorenho. Segundo eles, a relativa paz em El Salvador era uma consequência de acordos informais entre os governantes e os donos de facções narcotraficantes (lá chamadas de pandillas). Direita e esquerda se alternavam no poder, todas prometendo dar uma dura nos bandidos, chegando até a declarar estado de sítio – mas não adiantava nada. O diferencial de Bukele, quando chegou à presidência, foi botar todo o mundo na cadeia.

... quando o pequenino El Salvador se insurge, todos os países ocidentais começam a pensar em imitá-lo

Cito o artigo da Compact: “ao contrário das platitudes de muitos progressistas, o encarceramento é um remédio crucial para o crime violento. Mais especificamente, o sucesso de políticas linha dura confiam na redução da impunidade. O problema das políticas linha dura na América Latina costuma ser o seu fracasso em enfrentar a fraqueza subjacente de sistemas judiciários em Estados como El Salvador. Até 2022, menos que 3 de cada 100 detenções no país resultavam em condenação. Sob o atual estado de exceção, todos os que são detidos vão para a cadeia, e a suspensão de garantias constitucionais facilita as condenações por meio de julgamentos em lote de pandilleros suspeitos. Noutras palavras, quando o Estado priva os cidadãos dos seus direitos individuais, reduzir o crime se torna uma perspectiva menos intimidadora.”

Ao meu ver, o drama da substituição dos direitos humanos pelos direitos dos manos é o risco de, acabando com os direitos dos manos, ficarmos sem direito nenhum, jogando fora a história milenar do Direito Romano. Mas pelo menos El Salvador fez isso e acabou com a violência; torçamos para que consigam se restabelecer os princípios romanos após um necessário freio de arrumação salvador de vidas. Porém, não entusiasma o fato relatado pela Compact de que Bukele está prendendo grevistas também.

Outro problema é o financeiro. Manter tanta gente na cadeia não deve ser nada barato; deve demandar, no mínimo, a construção de um monte de presídio e abertura de concursos. Rojas e Shullenberger apontaram que a situação financeira de El Salvador não vai nada bem. Com uma economia dolarizada, El Salvador vive basicamente de remessas de salvadorenhos que moram nos EUA. Talvez para escapar dessa dependência de dólares Bukele tenha adotado o Bitcoin como moeda oficial alternativa. Isso ocorreu em setembro de 2021. No entanto, como contam Rojas e Shullenberger, “o preço do Bitcoin despencou quase 70% em junho de 2022. Tendo investido mais de 100 bilhões de dólares dos cofres públicos em criptomoedas, El Salvador estava à beira da falência durante 2022. No fim do ano, Bukele sofreu um golpe humilhante quando o país foi forçado a comprar de volta somas substanciais de sua própria dívida. Enquetes mostram que a adoção do Bitcoin é, de longe, a medida mais impopular do governo.”

Outro peso financeiro foram os aumentos do gasto social, no que ele se pareceu com todo o Ocidente na pandemia. No entanto, o seu aumento de gasto não foi só social; há investimento em obras públicas também. Segundo Rojas e Shullenberger, o partido Nuevas Ideas de Bukele mistura a segurança da direita com a economia da esquerda. Torçamos, porém, que esse investimento em obras não seja ao estilo odebrechtiano. Mas pelo menos os chineses chegaram no país (que num governo anterior trocou o reconhecimento de Taiwan pelo da China), estão investindo lá e há chances de crescimento real.

Em muitos sentidos, portanto, El Salvador é uma possível amostra do mundo do futuro: mais seguro, mais autoritário, mais ligado a negócios da China e com menos desigualdade entre os países de primeiro e terceiro mundo.

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