O fato é que cada ser humano é livre para escolher como beber. E, para não pararmos no liberalismo e suas derivações, é preciso acrescentar: o homem é impactado pela cultura dominante. Não é determinado, como pretendem os deterministas sociais, mas é impactado porque nenhum homem é uma ilha e o pensamento comum da sociedade exerce influência sobre o juízo privado de cada um.

Chesterton chegou a dar conselhos sobre o trato com a bebida: “A regra sadia parece ser a mesma de muitas outras regras saudáveis: um paradoxo. Beba por estar feliz, mas nunca por se sentir extremamente infeliz. Nunca beba quando estiver infeliz por não ter uma bebida, ou irá parecer um triste alcoólatra caído na calçada. Mas beba quando, mesmo sem a bebida, estaria feliz, e isso o tornará parecido com um risonho camponês italiano. Nunca beba por precisar disso, pois tal ato racional é o caminho para a morte e para o inferno. Mas beba por não precisar disso, pois beber irracionalmente é a antiga fonte de saúde do mundo.” Há sociedades que prescindem do álcool, como as islâmicas, e que escolhem outros métodos de entorpecimento, tais como comer cânhamo, mascar coca ou beber chá de ayahuasca. Abstraindo, podemos dizer que entorpecer-se irracionalmente é a antiga fonte de saúde no mundo; no caso do Ocidente, fazia-se isto com álcool. Isso só mudou com o advento do calvinismo.

A dependência de opioides massificada tem exatamente a origem imaginada por Chesterton: mandar as pessoas tomarem para ficarem saudáveis

Uma sociedade que infunda nos bebedores esse conselho de Chesterton faz bem aos indivíduos que a compõem. Já uma sociedade que mande se entorpecer por motivos sanitários é uma sociedade que fomenta cracolândias.

E já que chegamos à cracolândia, é a esse lugar que a reforma tributária se empenha em empurrar o bebedor pobre de final de semana. Se o preço da cervejinha, da cachaça, do licor, se tornar proibitivo por causa do “imposto do pecado”, que tipo de coisa que dá barato e não tem imposto se poderá consumir? Crack e maconha, duas drogas de pobre.

Nos EUA também há um fenômeno parecido com as cracolândias, a saber: massas de zumbis que ficam vagando pelas ruas das metrópoles. Nos EUA, em vez de crack, a droga que causa isso costuma ser fentanil, um opioide analgésico. É interessante que um opioide tenha os mesmos resultados que um derivado de coca. Por outro lado, ao me mudar de uma metrópole para uma cidadezinha do interior, uma dificuldade que tive foi identificar cracudo. Na metrópole, ele se apresenta sob a forma de zumbi ou de “noia”, com um aspecto vidrado. Aqui, apresenta-se como um sujeito aéreo demais. Hoje, se vejo um tipo desses pular seminu no Rio Paraguaçu e ficar dançando, atirando água pros lados, já sei que é cracudo local; enquanto isso, os turistas de Salvador acham tudo muito bonito e sacam as câmeras para fotografar a cena ao pôr-do-sol. Será que na metrópole eles têm o a mais droga e isso lhes dá um aspecto de zumbi? Será que há algum fator psicossocial inerente às metrópoles que explique uma diferença e uma semelhança inesperadas? Não faço ideia, nem tenho condições de averiguar.

Mas deixem-me insistir no fentanil. Sabem por que os EUA têm tanto problema com dependência de opioides? Porque lá ninguém toma dipirona; dipirona é proibida. Em vez de dipirona, toma-se opioide. Quanto à história do vício em opioides em geral, recomendo este texto de Paula Schmitt. De fato, houve um conluio das farmacêuticas com o governo e a imprensa para destruir a vida do cidadão estadunidense. E ainda que não houvesse tamanhas fraudes, o fato é que a dependência de opioides massificada tem exatamente a origem imaginada por Chesterton: mandar as pessoas tomarem para ficarem saudáveis, o que demanda um uso normalizado e, portanto, vicia.

Agora, um uso não imaginado por ele é o uso identitário de drogas associadas a transtornos psiquiátricos. O uso identitário de uma droga tem exemplo na maconha a partir da contracultura. A pessoa fuma para ser algo ou alguém; para assumir uma identidade revolucionária. Em tempos mais recentes, temos assistido a uma glamourização, seguida por normalização, de doenças mentais. As pessoas chegam a pôr “TDAH” nos seus perfis em redes sociais: os diagnósticos do DSM aram a ser mais ou menos como horóscopo; a pessoa associa um temperamento a um “transtorno” do mesmo jeito que fazia com um signo. Em vez de “sou virginiano”, a pessoa diz “sou autista”. A única diferença (pois a coisa mais fácil do mundo é conseguir um diagnóstico) é que vem um remedinho junto, que a pessoa tem que tomar por razões médicas. E, tal como o crack, é possível que as drogas psiquiátricas não tenham muito imposto. Sabiam que fentanil é direito humano? Fentanil é remédio, saúde é direito humano e a OMS tem uma lista de remédios essenciais que todo país respeitador dos direitos humanos deve dar.

Então é isso: vamos deixar de beber para obedecer ao médico. Nada de vinho. Entorpecimento, agora, só com remedinho, quando o médico mandar.

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