Uma das justificativas usadas pelo Judiciário em muitas das decisões questionáveis em temas relacionados à liberdade de imprensa é o combate às fake news. O problema é que nem ao menos existe uma definição jurídica clara sobre o que seriam as fake news e nem como enquadrá-las do ponto de vista criminal ou civil.
Projetos atualmente em discussão no Congresso, como a chamada de Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, até tentam preencher essa lacuna, mas ainda são vagos. A proposta, que prevê a criminalização dos disparos em massa de “mensagens inverídicas”, que possam causar “dano à integridade física” ou “comprometer a higidez do processo eleitoral”, peca pelo uso de conceitos ambíguos e pela falta de especificidade do que seria considerado crime. No texto não há definições sobre qual número de envios ou compartilhamentos poderia ser caracterizado como disparo massivo, nem quais critérios devem ser usados para estabelecer se um conteúdo é ou não verídico.
Enquanto não há uma definição sobre o que são as fake news, o termo ou a ser usado de forma indiscriminada, sendo associado, por exemplo, a discursos ou conteúdos que simplesmente contrariam certos posicionamentos majoritários. Isso ocorreu, por exemplo, nas decisões contrárias à divulgação de estudos ou opiniões a respeito de tratamentos alternativos ou questionamentos sobre as medidas adotadas duramente a pandemia de Covid-19.
Um exemplo foi o ocorrido com o jornalista Fernando Beteti, que foi simplesmente proibido de publicar vídeos em seu canal no YouTube com fontes que “contradigam as autoridades de saúde locais ou as informações médicas da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre o COVID-19”. A sentença foi proferida pelo juiz Antonio Carlos de Figueiredo Negreiros, da 7ª Vara Cível de São Paulo.
Também há as chamadas big techs, grandes provedoras de serviços de internet e redes sociais, que apelam ao combate das fake news para remover conteúdos e contas de acordo com seus próprios critérios. "É surreal imaginar empresas privadas centralizando o debate social de toda uma nação. É imoral, socialmente dizendo, que uma empresa diga o que eu possa ou não falar”, afirma Pedro Henrique Alves. “Quando você se sente ofendido tem instrumentos para reaver sua honra, mas quando empresas começam a ditar o que é certo ou errado no debate público não temos resguardo jurídico, mas uma condução do debate”, afirma.
Nesse cenário confuso, têm se recorrido às chamadas agências de checagem para fazer a distinção entre fake news e opiniões ou conteúdos verdadeiros. Foi o que anunciou, por exemplo, o STF, que prevê em seu Programa de Combate à Desinformação (PCD), lançado em setembro, a contratação dessas empresas para “buscar solucionar o problema da desinformação e dos discursos de ódio”.
Como já mostrou a Gazeta do Povo, as agências de checagem de informações estão longe de serem isentas, possuindo interesses econômicos ou ideológicos bem claros. Assim, no entender de especialistas, é temerário deixar para essas empresas o papel de definir a verdade e de estabelecer o que pode ou não ser dito.
Como ressalta o filósofo Pedro Henrique Alves, “as agências checam as verdades que lhes convém”. Segundo Alves, a checadora da sociedade deve ser a consciência individual de cada um, uma vez que somos dotados de razão e poder de interpretação. “Quando existe a terceirização da capacidade de interpretação racional para uma empresa privada você está simplesmente abandonando sua própria consciência, isso é o conceito de alienação”, diz. Para o filósofo, o debate – e o posicionamento – das agências sempre será pautado pela ideologia. “A busca da maturidade politica é sempre a saída”, conclui.
Adriano Gianturco concorda. Segundo ele, idealmente as agências reguladoras teriam o papel de limpar a arena política das coisas negativas, como fake news, discurso de ódio, calúnia e difamação. A dúvida é se elas são, de fato, capazes de fazer isso. “E a resposta a essa pergunta é não”, diz.
*** Veja abaixo mais algumas notícias alarmantes sobre liberdade de expressão e opinião ocorridas em 2021:
Uma decisão do corregedor-geral do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luis Felipe Salomão, em julho deste ano, fez com as redes sociais suspendessem o ree de valores a canais que, segundo o entendimento de Salomão, "comprovadamente" propagam desinformação sobre as eleições. Os canais listados na decisão divulgaram os questionamentos do presidente Jair Bolsonaro em relação às urnas eletrônicas. A decisão atingiu, por exemplo, canais como Te Atualizei, Jornal da Cidade Online, Terça Livre, Folha Política e Vlog do Lisboa. Mesmo que a decisão não tenha impedido a veiculação de conteúdos, comprometeu significativamente a arrecadação de recursos e consequentemente a manutenção dos canais.
Em meio à pandemia de Covid-19, casos de censura ou restrição de conteúdos contendo questionamentos sobre medidas como o lockdown ou aporte da vacina, bem como sobre a eficácia e possíveis efeitos colaterais das vacinas foram sistematicamente taxados como “fake news”. Médicos e profissionais de saúde que se posicionaram contra posições de organismos como a Organização Mundial de Saúde também foram censurados pelas redes sociais e Justiça.
Deputado federal pelo PSL do Rio de Janeiro, Daniel Silveira foi preso no início deste ano por divulgar nas redes sociais um vídeo com críticas e ofensas a ministros do STF. O parlamentar foi preso em 16 de fevereiro de 2021, por ordem do ministro Alexandre de Moraes. O mesmo ministro revogou a prisão do deputado em novembro, mas determinou como medidas cautelares que o parlamentar não se manifestasse em nenhuma rede social e que não mantivesse contato com outros investigados em inquéritos conduzidos pelo STF. Posteriormente, Silveira foi proibido expressamente de dar entrevistas a veículos de comunicação. Como a Gazeta do Povo mostrou, juristas consideraram a proibição inconstitucional. Em nenhum país democrático, um parlamentar, eleito pelo povo, é proibido de dar sua opinião - ainda mais a partir de uma lei extinta, como é o caso da Lei de Segurança Nacional, pela qual o deputado foi preso, revogada em setembro deste ano.
O ano de 2021 foi marcado por uma série de “cancelamentos”, ou seja, condenações midiáticas e boicotes contra quem diz algo contrário ao chamado politicamente correto. Um dos exemplos mais marcantes disso foi o do jogador de vôlei Maurício Souza. Em outubro, o jogador, medalha de ouro nas Olimpíadas de 2016, foi demitido do Minas Tênis Clube, onde jogava, por criticar o ativismo LGBT.
Ele foi alvo de uma campanha de cancelamento nas redes sociais depois de questionar, em um post, o uso da linguagem neutra em novela da Rede Globo. Em outra mensagem ele criticou o fato de a DC Comics ter caracterizado o atual Super-Homem como bissexual. Em um terceiro post, ele publicou uma foto crítica à inclusão de Gabrielle Ludwig na equipe feminina de basquete dos EUA. Ludwig era da Marinha Americana, mudou de sexo e fez cirurgia aos 50 anos, e fisicamente é maior e mais forte que as outras atletas.
Durante os trabalhos da I da Covid, o relator, senador Renan Calheiros (MDB), apresentou diversos requerimentos pedindo a quebra de sigilo de dados, incluindo de informações bancárias, de pessoas, perfis e empresas que, segundo alegação de Calheiros, estariam relacionados a “disseminação de fake news”. Um dos pedidos era o da quebra de sigilo bancário do grupo Jovem Pan. No requerimento, Calheiros argumentou que queria “apurar o financiamento de informações falsas na pandemia de Covid-19”.
Em resposta, o presidente da emissora classificou o requerimento como "ataque à liberdade de expressão". A ação de Calheiros causou repúdio da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abratel) e da Federação Nacional das Empresas de Rádio e Televisão (Fenaert).
Já o cantor Sérgio Reis teve sua casa revistada pela Polícia Federal por “eventual cometimento do crime de incitar a população, através das redes sociais, a praticar atos violentos e ameaçadores”. Quem fez o pedido de busca e apreensão foi o ministro Alexandre de Moraes. O motivo da ação foi a divulgação de um áudio em que o cantor Sérgio Reis, conversando com um amigo, defende o afastamento dos ministros do STF e fala “Se em 30 dias não tirarem os caras nós vamos invadir, quebrar tudo e tirar os caras na marra. Pronto. É assim que vai ser. E a coisa tá séria”. Depois da repercussão, o cantor disse estar arrependido e surpreso com o caso.
O ex-deputado e ex-presidente nacional do PTB, Roberto Jefferson, foi preso preventivamente por decisão do ministro do STF Alexandre de Moraes, em 13 de agosto deste ano, sob a acusação de atacar poderes da República e o Estado Democrático de Direito. Em sua decisão, Moraes coloca Jefferson como parte do núcleo político de uma organização criminosa que teria como objetivo "desestabilizar as instituições republicanas" e que vem sendo investigada pela Polícia Federal no chamado inquérito das "milícias digitais". Ao mesmo tempo, o ministro afirmou que a prisão foi necessária para garantir a ordem pública e o adequado andamento da investigação.
A fisioterapeuta Camila Santos Leitão acabou detida após xingar o presidente Jair Bolsonaro às margens da Rodovia Presidente Dutra, em Resende (RJ), no final de novembro. Bolsonaro chegava à formatura de cadetes na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman). Camila teve que preencher um termo circunstanciado assumindo o compromisso de comparecer em juízo quando for intimada. A fisioterapeuta responderá pelo crime de injúria, que tem pena prevista de um a seis meses de detenção.
* Colaborou Mariana Fanti, especial para a Gazeta do Povo.
VEJA TAMBÉM: