É quando a a expor sua visão de uma sociedade mais fraterna que Francisco confunde muitos de seus leitores, especialmente aqueles acostumados a rotular e ver com desconfiança qualquer proposta que fuja por milímetros de convicções político-ideológicas profundamente arraigadas. O “caminho do meio” de Francisco se apoia na tradição da Doutrina Social da Igreja e no pensamento de alguns dos maiores teólogos da história do catolicismo, como Tomás de Aquino. O papa pede maior cooperação internacional, mas rejeita explicitamente o globalismo; defende o livre mercado, mas recorda que ele, sozinho, não é capaz de resolver todos os problemas da sociedade; reconhece a propriedade privada como direito importante, mas diz que ele não é absoluto e que serve a um propósito social; recusa tanto o igualitarismo coletivista típico da esquerda quanto a noção de que o sucesso de alguém depende única e exclusivamente do esforço individual. Enxergar em trechos isolados e descontextualizados de Fratelli tutti indícios de “comunismo”, em uma ponta, ou “liberalismo”, na outra, é olhar uma árvore sem ver a floresta. Serve para marcar posições ideológicas, mas falseia o pensamento do papa.
O que Francisco pede, no fim, é a redescoberta da noção de dignidade humana e do bem comum, que permearão todas as dimensões da sociedade. Isso se reflete na ordem econômica: “Uma sociedade humana e fraterna é capaz de preocupar-se por garantir, de modo eficiente e estável, que todos sejam acompanhados no percurso da sua vida, não apenas para assegurar as suas necessidades básicas, mas para que possam dar o melhor de si mesmos, ainda que o seu rendimento não seja o melhor, mesmo que sejam lentos, embora a sua eficiência não seja relevante”, afirma o papa. Sem paternalismos ou estatismos, mas também sem aquela distorção da meritocracia que tende a abandonar à própria sorte os “perdedores”. Ainda que a economia não seja um jogo de soma zero, em que o rico só é rico por ter tomado tudo do pobre, Francisco recorda o dever moral de solidariedade dos que têm para com os que não têm.
VEJA TAMBÉM:
Na política, a redescoberta da fraternidade leva a uma “grandeza” que “trabalha com base em grandes princípios e pensando no bem comum a longo prazo” e conduz a “uma ordem social e política cuja alma seja a caridade social”. Há de se reconhecer a dignidade intrínseca do mais fraco – do pobre, do migrante –, mas também daquele que tem convicções ideológicas diversas. “Sobretudo o governante é chamado a renúncias que tornem possível o encontro, procurando a convergência pelo menos nalguns temas. Sabe escutar o ponto de vista do outro, facilitando um espaço a todos. Com renúncias e paciência, um governante pode ajudar a criar aquele poliedro bom onde todos encontram um lugar”, afirma o papa, acrescentando ser necessário que as pessoas se comprometam “a viver e ensinar o valor do respeito, o amor capaz de aceitar as várias diferenças, a prioridade da dignidade de todo ser humano sobre quaisquer ideias, sentimentos, atividades e até pecados que possa ter”, e que “um bom político dá o primeiro o para que se ouçam as diferentes vozes”.
É um roteiro amplo, que cobre das relações interpessoais aos grandes temas da organização de uma sociedade. Mas de ingênuo ou utópico não tem nada. Seu ponto de partida é aplicar o antigo preceito, saído da boca do próprio Cristo, de “amar o próximo como a si mesmo” em sua inteireza: quando tantos isolam apenas o trecho sobre “si mesmo”, é preciso recordar que existe um próximo que deve ser amado da mesma forma. Feito isto, o resto, como dizem, será história. E o papa acredita piamente que a humanidade é capaz dessa virada. Acreditemos também nós, e esforcemo-nos para nos mostrar dignos de tal confiança.