A tese ainda chama a atenção também pelo que ela deixa de lado. Décadas de debates levaram à construção de um arcabouço legal e doutrinal sobre a extensão da proteção à liberdade de imprensa quando se reproduz afirmações de terceiros. Um caso emblemático é o dos incisos II, IV e VI do artigo 27 da antiga Lei de Imprensa (5.250/67), pelo qual “não constituem abusos no exercício da liberdade de manifestação do pensamento e de informação” a reprodução de informações provenientes de autoridades. Por mais que a Lei de Imprensa tenha sido derrubada, este princípio foi recepcionado pela doutrina e pela jurisprudência, mas ainda assim foi completamente ignorado na redação da tese, assim como outros princípios relevantes, a exemplo do neutral reportage privilege norte-americano, o que evidencia a enorme pobreza teórica que norteou não só a elaboração da tese, mas também boa parte das reações a ela.

Mas a perigosa vagueza da tese, como dissemos, é apenas uma das ameaças à liberdade de imprensa. Quem quer que não tenha fechado os olhos aos abusos cometidos ao menos desde 2019 sabe que temos o Supremo mais liberticida das últimas décadas. Alguém em sã consciência haverá de imaginar que estes ministros, nos casos que vierem a julgar no futuro, usarão a tese de forma a evitar restrições indevidas à liberdade de imprensa? É preciso lembrar que os três membros do Supremo que integravam o TSE em 2022 votaram a favor da censura prévia a um documentário da produtora Brasil Paralelo; que foi um então ministro do STF, Ricardo Lewandowski, que cunhou o termo “desordem informacional” para justificar outro ato de censura da corte eleitoral. Informações de bastidores sobre a elaboração da recente tese afirmam que sua versão original, saída da pena de Alexandre de Moraes (quem mais?), era ainda pior, tendo sido classificada por Marcelo Rech, presidente-executivo da ANJ, como “grave ameaça à liberdade de imprensa”.

A tese não é um simples lembrete de que o jornalismo inconsequente está sujeito a uma punição justa; ela deixa uma espada de Dâmocles pendendo sobre a cabeça de qualquer jornal que queira realizar seu necessário trabalho de denúncia

A história brasileira recente é pródiga em escândalos que só viram a luz graças a denúncias feitas à imprensa, em entrevistas – basta lembrar os casos de Pedro Collor e Roberto Jefferson, o delator do mensalão –, e que só depois foram devidamente investigadas. Mas, com a nova tese do Supremo, o mais provável é que, como alertou a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), ocorra uma autocensura, com editores desistindo de publicar entrevistas, receosos de que as informações acabem não se confirmando posteriormente e que um juiz condene o veículo de imprensa usando arbitrariamente os conceitos da tese.

A responsabilidade é obrigação do jornalista, e nenhuma publicação ou veículo de imprensa tem o direito de lavar as mãos apenas por estar reproduzindo afirmações de um entrevistado. A tese, no entanto, não é um simples chamado à responsabilidade e um lembrete de que o jornalismo inconsequente está sujeito a uma punição justa; o que o Supremo fez foi deixar uma espada de Dâmocles pendendo sobre a cabeça de qualquer jornal que queira realizar seu necessário trabalho de denúncia. As entidades representativas de profissionais e veículos de imprensa esperam que a publicação do acórdão, que será redigido por Edson Fachin, solucione as lacunas e as ambiguidades da tese – mas, para que ela se torne realmente democrática, respeitadora da liberdade de imprensa e condizente com toda a boa doutrina sobre o tema, será preciso melhorá-la muito.