Segundo os organizadores dos processos seletivos, essa ampliação busca promover um diálogo com a realidade brasileira e ampliar a perspectiva dos alunos a partir da compreensão de diferentes linguagens. Um expediente nem sempre aprovado por parte da comunidade acadêmica, preocupada com o abandono gradual do cânone literário e do critério “qualidade” nas escolhas das obras trabalhadas. 311q56
Esse receio aumentou neste fim de ano, quando a Fuvest (Fundação Universitária para o Vestibular), notória por organizar as provas para o ingresso na Universidade de São Paulo (USP), anunciou uma nova lista de livros para as edições de 2026, 2027 e 2028. Composta exclusivamente por títulos de autoria feminina, a relação foi formulada, de acordo com a instituição, para reparar “décadas de invisibilidade pelo fato de as escritoras serem mulheres”.
Os homens só retornam ao concurso em 2029, e representados por apenas três nomes: Machado de Assis, Erico Verissimo e o moçambicano Luís Bernardo Honwana. Até lá, os candidatos serão obrigados a ler Clarice Lispector, Conceição Evaristo, Djaimilia Pereira de Almeida, Julia Lopes de Almeida, Lygia Fagundes Telles, Narcisa Amália, Nísia Floresta, Paulina Chiziane, Rachel de Queiroz e Sophia de Mello Breyner Andresen.
Os dois principais jornais de São Paulo reagiram com contundência contra a medida, apesar de possuírem vieses ideológicos diferentes. O Estadão, mais conservador, acusou a Fuvest de “amesquinhar um exame que deveria medir o grau de conhecimento dos alunos, não seu nível de engajamento a determinada ‘causa’’’.
“Ao abolir grandes autores da língua portuguesa do rol de leituras obrigatórias para ingresso na USP durante nada menos que três anos, a fundação contribui para o envenenamento de uma discussão de fundo – as deficiências programáticas da educação básica e o baixo nível de leitura dos brasileiros – em nome de uma agenda de natureza eminentemente ideológica”, diz um trecho do editorial publicado no início deste mês.
Mesmo a progressista Folha de S. Paulo abriu espaço para os descontentes. Na reportagem intitulada ‘Escritoras criticam lista do vestibular da USP só com livros de mulheres’, o jornal ouviu figuras como a professora Juracy Assmann Saraiva, pós-doutora em Teoria Literária pela Unicamp e pesquisadora da formação de leitores no ensino médio. Para Juracy, a resolução “é preconceituosa em relação às próprias escritoras mulheres, cujas obras não dependem de um processo seletivo de vestibular para serem valorizadas e afirmarem sua qualidade estética”.
A mesma Folha ainda publicou outra matéria sobre a dificuldade de o aos livros exigidos. Segundo a apuração, muitos dos títulos não estão disponíveis nem para a venda – tampouco fazem parte do acervo das bibliotecas públicas.
Mas a reação mais consistente à decisão da Fuvest foi organizada dentro da academia. Na última quinta-feira (14), mais de 100 professores de todo o país, incluindo docentes da própria USP, publicaram uma carta aberta contrária à nova lista.
“A adoção de um único critério para a escolha dos livros desconsidera a especificidade da literatura, com risco de corroborar os novos tempos utilitaristas de desvalorização das linguagens artísticas e, sobretudo, o foco na figura do/a autor/a ou nas camadas mais superficiais do texto”, afirma o documento, assinado por homens e mulheres.
Os signatários também consideram “grave” a retirada de Machado de Assis da relação. E criticam a “perda do lugar da literatura”, já que o livro ‘Opúsculo Humanitário’ (1853), de Nísia Floresta (1810-1855), pioneira do feminismo brasileiro, não é uma obra de ficção – o título recupera a história da condição feminina através dos tempos e defende a educação das mulheres como premissa fundamental para o progresso das sociedades.
“A decisão de substituir as já tradicionais listas para o vestibular por obras de outros gêneros discursivos trará impacto ao campo educacional. A poesia, a prosa de ficção, a crítica, a teoria literária e os estudos literários comparativos serão transformados em saberes secundários, com risco de seu gradual desaparecimento do sistema de ensino”, afirmam os docentes.
Em entrevista à Gazeta do Povo, o professor Gustavo Monaco, diretor-executivo da Fuvest, comentou o “manifesto” divulgado pelos acadêmicos. “Estamos num ambiente universitário e todo debate é bem-vindo. Mas bate-se muito, por exemplo, na ausência do Machado de Assis. Não é a primeira vez que ele fica de fora da lista. Por que, lá atrás, ninguém reclamou?”
Ele também coloca em xeque a crítica com relação à inclusão de um livro de não ficção. “Isso já havia sido pré-anunciado no início do ano, por que o espanto agora? São oito obras de ficção e apenas uma de não ficção. Em outras edições, chegamos a ter cinco de ficção”, diz.
Sobre a acusação de “utilitarismo”, Monaco é enfático: “Não vou comentar isso agora. A prova é que vai dizer por si. Mas não há nenhum viés utilitarista ou ideológico no nosso vestibular”.
Talvez a preocupação dos acadêmicos possa parecer exagerada. Mas como a Fuvest costuma ditar tendências para outros concursos no Brasil, é possível que logo outras instituições adotem modelos semelhantes em suas listas de leituras obrigatórias.
“A palavra ‘tendência’ é justamente uma chave para pensar essa situação”, diz a professora Patrícia Cardoso, do Departamento de Literatura e Linguística da Universidade Federal do Paraná (UFPR). “Quando você tenta seguir uma corrente, é como se estivesse dizendo: ‘Olha como estamos atentos!’. É possível que haja um elemento midiático nessa escolha.”
Para Patrícia, a valorização do papel das mulheres na literatura depende exclusivamente da qualidade literária do texto que elas produziram. “A lista em si não diz nada. A questão é quem você coloca nela”, afirma a professora, doutora em Teoria e História Literária.
Ela reconhece o vigor da maioria das obras selecionadas e destaca, positivamente, a introdução de três autoras estrangeiras lusófonas (Djaimilia Pereira de Almeida, Paulina Chiziane e Sophia de Mello Breyner Andresen). No entanto, acredita que Nísia Floresta e Narcisa Amália estão situadas “lateralmente” no quadro da literatura brasileira.
Coordenador da área de Literatura da rede de colégios Bom Jesus – e, portanto, responsável pela preparação de estudantes para o vestibular –, o professor Guilherme Shibata vê a nova relação de livros da Fuvest como “uma provocação interessante”.
“Toda lista é um olhar, um recorte. Não é um the best of de todos os tempos. Se fosse assim, será que leríamos os brasileiros? Ninguém estuda a ‘física brasileira’. Além do mais, não vamos deixar de trabalhar o Machado de Assis no ensino médio porque não entrou na prova para a USP”, diz.
De acordo com ele, o vestibular é o menor dos problemas enfrentados pela educação no Brasil. “Não estou preocupado com guerra ideológica, e sim com a formação de leitores”, afirma, lembrando dos baixos índices de leitura registrados no país.
Já a professora e gestora pública Claudia Costin (ex-diretora de Educação do Banco Mundial e ex-ministra da istração e Reforma no governo de Fernando Henrique Cardoso) acredita que uma seleção de leituras exclusivamente de autoria feminina é impositiva e corre o risco de causar o efeito oposto ao desejado pela USP.
“Entendo a motivação e sou a favor de várias ações afirmativas, como as cotas para alunos egressos de escolas públicas no ensino superior. Mas não achei a nova lista uma boa ideia, pois ela não busca avaliar a aptidão dos alunos e gera uma resistência em certos de setores da sociedade”, diz Claudia, que atualmente preside o Instituto Singularidades – entidade sem fins lucrativos voltada para a formação de professores e ligada ao Instituto Península, organização social mantida pela família do empresário Abílio Diniz.
Claudia ainda destaca que a grande maioria dos docentes no Brasil é do sexo feminino. “Nesse sentido, uma ação mais inclusiva seria ter mais homens lecionando, para que os rapazes também queiram ser professores”, afirma a educadora, que não aposta na irradiação da proposta da Fuvest para outros concursos no futuro. “Ouvi muito críticas nos últimos dias. Acho que isso não vai virar uma tendência.”
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